A DEFINIÇÃO DE HABILIDADES E MICRO-HABILIDADES LINGUÍSTICAS NA AVALIAÇÃO
- SABELETRAS
- 18 de dez. de 2022
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Atualizado: 20 de dez. de 2024
Um aspecto fundamental de qualquer projeto de avaliação é a clareza do que se pretende avaliar. Isto significa que é necessário ter um objetivo claro, bem como conhecimento das características do contexto no qual se deseja introduzir tal projeto. No contexto escolar, por exemplo, os professores precisam conhecer bem suas turmas e os objetivos da avaliação em termos do tipo de decisão que se pretende tomar: diagnosticar pontos fortes e fracos dos estudantes; tomar decisões sobre aprovação/reprovação, dentre outras ações.
Também é importante ter clareza das habilidades que se deseja avaliar no ensino de uma língua. Para se ter ideia do que isto significa, tomemos como exemplo o que poderia estar envolvido na avaliação da habilidade de escrita. Vamos nos ater a uma situação de língua materna, como no caso da língua portuguesa, e tomar como referência estudantes do ensino médio. Vamos começar por micro-habilidades gerais da escrita e supor que os textos produzidos sejam escritos em língua padrão na modalidade argumentativa-dissertativa. É natural esperar que tais estudantes demonstrem domínio de:
ortografia;
acentuação;
pontuação;
concordância;
regência;
estruturação de períodos simples e compostos;
construção de argumentos centrais;
construção de argumentos secundários e apresentação de evidências;
recursos de coesão e coerência textuais.
A lista não tem a pretensão de esgotar todos os aspectos gerais - formais e textuais - de uma atividade de escrita. Contudo, considere que a lista se estenderia se considerarmos especificidades de um gênero textual e de uma situação comunicativa particular. Suponhamos a título ilustrativo que o gênero em questão seja uma carta do leitor. Outras micro-habilidades se mostrarão necessárias. Novamente, sem pretender esgotar todas as possibilidades, estas micro-habilidades poderiam incluir:
fazer alusão a um tema ou matéria jornalística publicada;
elaborar um argumento crítico sobre o tema e matéria em referência;
apropriar-se de convenções próprias do gênero tais como as saudações;
demonstrar domínio das regras de polidez da escrita levando-se em conta a provável publicação da carta;
prever possíveis contra-argumentos do editor e se antecipar a eles em sua argumentação.
Os exemplos apresentados são suficientes para apreciarmos a importância de uma definição clara das habilidades e micro-habilidades linguísticas de um projeto de avaliação (provas, atividades avaliativas, portfólios etc). Diversos dos aspectos alistados seriam alterados se tivéssemos um outro contexto de avaliação: estudantes de outro nível de ensino e faixa etária; outros gêneros textuais; especificidades da tarefa. Em relação a este último aspecto, observe como as micro-habilidades esperadas poderiam se alterar se a tarefa proposta fosse a escrita de um e-mail de uma pessoa para uma empresa para solicitar informações sobre um produto, ou a revisão de valores e juros de uma compra. A situação comunicativa traz exigências muito particulares, que poderiam ser incorporadas a uma atividade de avaliação que tivesse como objetivo simular uma situação real. Penso que os pontos apresentados até o momento já permitem entendermos o que se pretende dizer com os conceitos de habilidade e micro-habilidades. O verbete 'habilidades linguísticas' do Glossário Ceale / UFMG explica que o termo se refere as atividades de ler, escrever, falar e ouvir. Por sua vez, a Teflpedia define micro-habilidades ou microskills como um componente de uma habilidade macro. Assim, a ortografia seria uma micro-habilidade da macro-habilidade de leitura, e a pronúncia uma micro-habilidade da macro-habilidade da fala. As micro-habilidades e as habilidades são, desse modo, entendidas como manifestações observáveis - que podem ser mensuradas - das competências não observáveis de um campo de conhecimento, as quais também são chamadas de construtos no campo da avaliação. Em uma situação de avaliação, existem diversos motivos para se buscar uma definição das habilidades avaliadas que incluam as micro-habilidades. Em primeiro lugar, a clareza sobre as micro-habilidades permite um compreensão melhor do que é a própria habilidade; de quais componentes ela se constitui; como se concretiza em uma situação comunicativa real. Em segundo lugar, levar em conta as micro-habilidades torna possível a elaboração de atividades e tarefas avaliativas com certo grau de detalhamento que favoreça diagnosticar focos de dificuldades dos estudantes com o objetivo de se prover ações que sanem seus pontos fracos e potencialize seu progresso. Permitem também distinções mais finas entre estudantes para fins de atribuição de notas. Em contexto de seleção, extra escolar, torna-se possível também diferenciar melhor os níveis de desempenho. Por fim, a definição das micro-habilidades abre as portas para uma avaliação mais justa no sentido de que o avaliador - em muitos casos os professores - se torna mais consciente do seu ato de avaliar. Como identificar as micro-habilidades
A familiaridade com as teorias linguísticas, de ensino-aprendizagem e de avaliação de línguas é fundamental para que se possa identificar as micro-habilidades associadas às habilidades linguísticas. Os avaliadores precisam decidir que habilidades precisam ser avaliadas para, então, fazerem estudos na literatura pertinente que elucidem as micro-habilidades.
Além de livros e artigos científicos, pode ser bastante útil fazer levantamentos nas documentações das avaliações, se estiverem disponíveis, o que inclui matrizes de referência. Um exemplo deste documento é a Matriz de Referência SARESP 2009 do estado de São Paulo que traz uma apresentação detalhada das habilidades para diversas áreas, incluindo língua portuguesa, embora o texto não use o termo micro-habilidade.
Inicialmente, um conjunto de competências de operações cognitivas é apresentado e discutido com os seguintes elementos:
1) Competências para observar
2) Competências para realizar
3) Competências para compreender
Em seguida, relacionados a essas competências, são apresentados seis temas agrupadores das micro-habilidades relativos à habilidade de leitura. São eles:
Tema 1 - Reconstrução das condições de produção e recepção de textos
Tema 2 - Reconstrução dos sentidos do texto.
Tema 3 - Reconstrução da textualidade.
Tema 4 - Reconstrução da intertextualidade e relações entre textos.
Tema 5 - Reflexão sobre os usos da língua falada e escrita.
Tema 6 - Compreensão de textos literários.
Cada tema, por sua vez, é composto por um conjunto de micro-habilidades que são organizadas em situações de leitura de textos não-literários e situações de leitura de textos literários. São apresentadas também situações de produção de texto, as quais estão vinculadas a outras competências. Esta estrutura geral é repetida para as diversas séries (anos) do ensino fundamental e médio. Nas demais seções, o documento apresenta as matrizes de referência para outras áreas do conhecimento escolar.
Para deixar ainda mais claro o uso de micro-habilidades na avaliação, vamos considerar o Tema 2 - Reconstrução dos sentidos do texto. Este tema, segundo a Matriz de Referência SARESP (p. 23, 24), é composto pelas seguintes micro-habilidades, chamadas de competências:
2. Recuperar informações em textos
2.1 Inferir tema ou assunto principal do texto.
2.2 Identificar o sentido de vocábulos ou expressões, selecionando a acepção mais adequada ao contexto em que estão inseridos.
2.3 Localizar informações explícitas em textos.
2.4 Sequenciar informações explícitas dos textos.
2.5 Inferir informações pressupostas ou subentendidas em textos.
2.6 Estabelecer relações entre imagens (fotos, ilustrações), gráficos, tabelas, infográficos e corpo do texto.
O documento esclarece, então, que este conjunto esta relacionado a diversos aspectos da leitura, à organização do texto, à coerência e a processos de coesão realizados por meio de sinônimos, hiperônimos, repetição e reiteração.
Com este nível de detalhamento na identificação das micro-habilidades, professores e gestores escolares podem desenvolver atividades e práticas pedagógicas, bem como avaliações, que tomem o documento como referência, o que deverá resultar em melhoria da aprendizagem, da avaliação escolar e do desempenho na avaliação externa aplicada na rede de ensino.
Assim, a análise cuidadosa das matrizes de referência e o estudo da literatura teórica nas áreas da leitura e escrita, gêneros textuais/discursivos, argumentação, linguística textual dentre outras constitui um importante caminho para que professores e avaliadores em geral se familiarizem com os diversos aspectos das habilidades linguísticas. Não seria possível neste texto abordar tudo o que se relaciona com a atividade de leitura ou as demais habilidades linguísticas, mas espero que as linhas acima tenham lançado alguma luz sobre o trabalho de ensino e avaliação que leva em conta as habilidades e micro-habilidades linguísticas.