SABERES DOCENTES EM AVALIAÇÃO E CENÁRIOS EXPERIMENTAIS
- SABELETRAS
- 17 de dez. de 2022
- 8 min de leitura
Atualizado: 20 de dez. de 2024
Prof. Newton Paulo Monteiro
Centro Universitário Alfredo Nasser - Unifan
Pouco discutidos no campo da educação, os chamados Thought Experiments (ou, experimentos de pensamento) possuem uma longa história nos campos da ciência e da filosofia. Os Thought Experiments são situações hipotéticas – ou cenários – elaboradas para se pensar e analisar os diversos aspectos de um problema. Neste artigo, vou me referir a este conceito simplesmente pelo termo cenários, que evidentemente continuam a ter uma natureza fictícia. (Thought experiments, Stanford Encyclopedia of Philosophy; Thought Experiments in Science, encyclopedia.com).
Os cenários assumem a forma de narrativas, permitindo tornar mais concreta a abordagem de questões abstratas. Eles oferecem um leque de possibilidades para se analisar questões relacionadas ao campo da avaliação em formações com grupos de professores. Diferentemente dos estudos de casos, os cenários não exigem a identificação de situações reais para serem apresentados. Um pouco de imaginação é o suficiente para se elaborar diversas narrativas com grande potencial instrutivo. Além disso, os cenários não têm compromisso com qualquer semelhança com a realidade. De fato, situações interessantes podem ser propostas justamente por se violar uma pretensa ‘lógica natural’. Os cenários possibilitam ainda o enfoque em questões conceituais e éticas, em vez de em dados reais, o que favorece a externalização, internalização e discussão de concepções sobre avaliação. Isto significa que em atividades formativas as crenças dos professores podem ser verbalizadas e postas em discussão, assim como também se pode pôr em debate os conceitos estabelecidos no campo da educação. Os cenários permitem, portanto, questionar e flexibilizar visões estabelecidas em um processo dialógico e colaborativo por meio de atividades em grupo.
Em contextos de formação docente, os cenários podem contribuir para o que vem sendo chamado de letramento em avaliação. O conceito se refere ao desenvolvimento de “saberes sobre a natureza e premissas da avaliação, além de suas funções e finalidades, e conseguir contextualizar estes saberes nas práticas cotidianas avaliativas” (Gomes, 2020). O uso do termo letramento tem se tornado comum em diversos contextos. É comum se falar, por exemplo, em letramento digital, letramento literário, letramento científico e letramento em saúde. Em geral, estas expressões – bem ou mal definidas – se referem a um processo similar ao percorrido pela criança na aquisição das habilidades de escrita e leitura. Assim, o termo letramento – cuja aplicação generalizada ofusca seu significado – parece sugerir de forma implícita a existência de um déficit de conhecimentos entre professores, como se eles e elas carecessem de experiências e conhecimentos sobre o campo da avaliação (agradeço às professoras Beverly Baker e Lynda Taylor por me trazerem estes pontos à atenção em um momento produtivo de discussão).
Pelos motivos apresentados, neste texto, vou substituir o termo letramento em avaliação por saberes docentes em avaliação. A ideia de se desenvolver ou promover tais saberes permanece na discussão, assim como é próprio de qualquer profissional em qualquer etapa da sua carreira. Evita-se, porém, a ideia de que os professores sejam destituídos de conhecimentos sobre o campo.
Esta perspectiva é bastante alinhada com a proposta de utilizar cenários em situações formativas. A razão é que as atividades baseadas em cenários estimulam os professores a se expressar e se posicionar, o que significa que os docentes têm muito a dizer sobre avaliação. Os cenários são uma espécie de input para discussões, mas o material de reflexão só se completa a partir do momento em que os professores colocam seus pontos de vista em discussão. Assim, cada docente tem a oportunidade de ouvir os outros e reconsiderar suas posições e suas posições podem ser objeto de discussão de todo o grupo.
A seguir, vou apresentar um exemplo de cenário de minha autoria para discutir questões de avaliação. Vou sugerir algumas maneiras de utilizá-lo em situações formativas e tecer comentários sobre como conceitos implícitos na narrativa podem ser discutidos.
Um exemplo
Célia, a professora de língua inglesa, elaborou suas provas semestrais para composição das notas de seus alunos. Célia trabalha em uma escola em que os diretores acreditam no Instrumento prova e por isso exige-se dos professores que reservem 80% da pontuação para este instrumento. Os 20% restantes são avaliados conforme as preferências dos professores. Célia decidiu trabalhar com a reescrita de produções textuais e com avaliação por pares. Ao final cada estudante escolhe quatro produções, justifica suas escolhas e entrega para avaliação da professora.
Em uma situação bem diferente, sua amiga Marta trabalha em uma escola em que os diretores são bem avessos ao uso de provas. Eles acreditam na importância de uma avaliação formativa, que acompanhe o progresso dos estudantes ao longo do período letivo e que valorize a participação. Por isso, eles proibiram a realização de provas, mas deram aos professores liberdade para escolher seus instrumentos de avaliação, bastando que ao final do período um registro do processo seja arquivado nos documentos da escola.
Em seus respectivos contextos, cada professora faz suas escolhas. Célia analisa cuidadosamente os documentos oficiais, o projeto político-pedagógico, o livro didático, atividades extra e seus planos de aula. Ela se assegura de elaborar suas provas contemplando os conteúdos e habilidades trabalhadas e que as atividades da prova sejam semelhantes àquelas da rotina da sala de aula. Ela redige um plano de avaliação com definições claras do que cada questão deverá contemplar, seu formato e em que atividades rotineiras ao longo do semestre estes conteúdos, habilidades e formatos foram trabalhados. A partir desse plano, Célia elabora suas provas. Depois soma os resultados com os pontos da avaliação das produções textuais.
Marta também precisa entregar a direção da escola um documento com as notas dos alunos, mas ela não precisa elaborar provas. Ao longo do semestre, ela já elaborou atividades para seus alunos e foi registrando suas notas. Marta organizou quatro atividades para cada uma das 5 unidades do livro didático. Marta atribui meio ponto para cada atividade, de modo que todas as atividades somadas valem 10 pontos. Cada atividade abordou um conteúdo novo. O estudante que não entregasse ou errasse a atividade obteria zero como nota, enquanto aqueles que acertassem as atividades receberiam o meio ponto acordado. Suas notas finais seriam a soma das atividades corretas entregues.
Agora em um café, as amigas discutem sua forma de avaliar. Marta acha que já passou o tempo da tirania das provas e exames. Célia afirma que o método de Marta não tem nada de formativo e que provas bem planejadas podem ser um instrumento de avaliação entre outros. O diálogo prossegue até que as amigas se dão conta das horas e que precisam ir para casa elaborar os planos de aula da manhã seguinte.
Como utilizar este cenário em formações docentes
Este cenário pode ser utilizado em eventos de formação de professores ou reuniões pedagógicas. Um professor mediador abre o momento de formação explicando a proposta dos cenários e apresentando as instruções iniciais e materiais. Os professores podem ser organizados em grupos de discussão e cada professor deve receber uma cópia do cenário. Os professores são orientados a discutir a narrativa por um período específico – por exemplo 15 minutos. Em seguida, o mediador abre a discussão dando voz aos colegas para que se expressem sobre o cenário. Algumas anotações sobre comentários dos docentes podem ser registradas para uma síntese ao final da discussão.
A tendência é surgirem divergências dentro e entre os grupos. Isto pode ser bastante produtivo e permitir que diversas percepções sobre as narrativas sejam verbalizadas. O contraste de opiniões pode ser bastante instrutivo para todos, já que cada professor terá a oportunidade de analisar suas posições e dos colegas de maneira crítica, o que pode resultar em reformulação das concepções enraizadas.
Explorando os aspectos conceituais do cenário
O cenário em questão foi elaborado para estimular a discussão sobre a avaliação somativa e a avaliação formativa. A narrativa sugere que diferentes instituições de ensino podem reagir de forma distinta a estas propostas de avaliação. Em instituições públicas, que seguem normas externas, há uma tentativa de padronização, nem sempre tão bem-sucedida quanto se espera. Por outro lado, em escolas particulares, a tendência é cada instituição ter sua própria maneira de interpretar os discursos sobre avaliação. Assim, nem sempre cabe aos professores definir as modalidades de avaliação que serão adotadas, já que existem forças externas em operação.
Por outro lado, isto não significa que os professores seguem rigorosamente estas normas. Diversos fatores conscientes e inconscientes, tais como discordância das normas, habilidades, crenças e hábitos, podem interferir na maneira dos professores avaliarem. Finalmente, é preciso reconhecer que instituições e profissionais da educação recebem de forma diversa as teorias e os discursos dos documentos oficiais. Em resumo, existe a possibilidade de haver grande diversidade nas formas de avaliar dependendo dos contextos e de seus sujeitos.
O cenário nos permite ainda problematizar as práticas que se definem como avaliação formativa e somativa. A personagem Célia pratica as duas formas de avaliação conforme a definição institucional. A professora é bastante cuidadosa com sua elaboração de provas e mantém uma rotina de outras atividades avaliativas. Marta, porém, só precisa se preocupar com a elaboração e aplicação de atividades. Pode-se, assim, imaginar que Célia atua em um contexto de avaliações formativas e somativas, ao passo que Marta participa de um ambiente em que apenas a avaliação formativa é aceitável. No entanto, a situação narrada merece um olhar mais cuidadoso.
De fato, Célia trabalha com provas tradicionais e com reescrita de textos e avaliação por pares. Assim, é evidente que a avaliação formativa está presente em sua prática. A situação de Marta é diferente. Mesmo não utilizando o instrumento prova, a professora não faz um uso formativo das atividades que aplica. Ela até desenvolve um número razoável de atividades, o que lhe ofereceria amplas possibilidades de fazer um trabalho formativo. Não parece, porém, que Marta faz devolução comentada das atividades com objetivos formativos. Ela registra notas para todas as atividades e o texto não menciona que ela conceda aos alunos uma nova oportunidade para reavaliar e melhorar suas atividades. Marta trabalha com uma concepção de produto – e não de processo – somando as pontuações parciais para cada atividade que contempla um conteúdo novo.
O cenário desvela, portanto, algumas questões para se refletir sobre as modalidades de avaliação. É comum se relacionar as provas tradicionais com avaliações somativas, e atividades com avaliações formativas. O cenário nos permite questionar estas classificações, uma vez que está claro que a mera aplicação de atividades por parte de uma das professoras não torna a sua prática formativa. Além disso, seria possível também questionar a relação das provas com avaliações somativas. O texto não faz menção a isso, mas Célia poderia utilizar pelo menos algumas de suas provas com objetivos diagnósticos, o que favoreceria fazer das provas instrumentos adicionais de avaliação somativa. Portanto, são questionadas as classificações estanques dos instrumentos de avaliação.
Estas considerações não pretendem produzir uma inversão de conceitos e defender que provas são formativas e atividades são somativas. A questão principal é como os professores utilizam os instrumentos de avaliação – como instrumentos classificatórios de tomada de decisão ou como promotores da aprendizagem. A decisão de como proceder a avaliação pode resultar em que os diferentes instrumentos sejam usados de maneira ou formativa ou somativa. De maneira geral, as duas formas de avaliação estarão presentes na prática da maioria dos professores, pois não se pode escapar da necessidade de ensinar, auxiliar, promover a aprendizagem e nem da inevitável tomada de decisão.
A utilidade dos cenários
Os cenários propõem situações fictícias para que os professores avaliem as ações dos personagens e reflitam sobre questões, decisões, conceitos e contextos que afetam as práticas de avaliar e ensinar. A elaboração dos cenários deve partir de algum conceito, problema prático ou inquietação em torno do tema da avaliação. A construção destas narrativas permite que os participantes de uma formação identifiquem estas questões, que podem ser intencionadas pelo elaborador do cenário. Além disso, há sempre a possibilidade de novas questões serem colocadas em pauta em uma formação, o que elevaria o potencial educativo do momento. Deste modo, os cenários podem ser um instrumento valioso em formações docentes, estimulando a exposição pelos próprios professores de conceitos implícitos nas narrativas, o que pode acontecer com ou sem consciência teórica.
Fontes:
GOMES, Helder. Letramento em avaliação na formação inicial de professores – o lugar da avaliação nas licenciaturas. GEPA – Grupo de Pesquisa em Avaliação e Organização do Trabalho Pedagógico. Acesso em: 28 de novembro de 2022.
Thought Experiments. Stanford Encyclopedia of Philosophy. Acesso em: 28 de novembro de 2022.
Thought Experiments in Science. Encyclopedia.com. Acesso em: 28 de novembro de 2022
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